Pular para o conteúdo principal
DONA AUGUSTA “...Eis que eu com esta vara, que tenho em minha mão, ferirei as águas que estão no rio, e tornar-se-ão em sangue. E os peixes, que estão no rio, morrerão, e o rio cheirará mal; e os egípcios nausar-se-ão, bebendo a água do rio...” Bairro nobre da capital, prédio antigo, na esquina de uma rua movimentada. Apartamento de fundos, térreo, janelas para garagem, 103. A última inquilina sofre de depressão, tem histórico de internações, aposentadoria por invalidez. Briga com a mulher do síndico, odeia o apartamento. Diariamente roga pragas ao prédio, à unidade onde mora, ao síndico, à mulher dele e aos moradores que não falam com ela. Gosta da moradora do 404 e do casal do 303. Homem pra ela é sinônimo de pilantra. Exceção, no mundo dos vivos, ao irmão e filho. Everardo, o filho, embora já no segundo casamento é um bom homem. Felipe, o irmão, liga toda semana, tem uma loja de produtos para pequenos animais, o que absorve seu tempo e energia. Toda vez que seus vizinhos amigos entram no prédio ela ataca e faz queixas do apartamento, do síndico, da mulher e filha dele, conta episódios de enfrentamento. Comenta conversas com o psiquiatra, que é um lindo homem. Receita-lhe exatamente o antidepressivo que ela necessita. Chama os moleques, cuidadores de carro, da rua para fazerem pequenos mandaletes. Desconfiada da honestidade deles, às vezes vai com eles até o supermercado. Comenta que Everardo só a procura no final do mês, quando sai seu pagamento, que é quase todo gasto na farmácia. Normalmente seu filho pede dinheiro emprestado e nunca mais fala em devolução Passado algum tempo de penúria, vizinhos ajudando, irmão bancando as maiores despesas, Dona Augusta se convence a ir morar numa casa para idosos. Custa a elaborar a ideia. Some Dona Augusta. O apartamento é anunciado para aluguel. Preço bom, considerando a localização. Parece que as pragas de Dona Augusta começam a se concretizar. Passa mais de um ano e o 103 continua fechado. O síndico se separa da mulher. Uma desgraça após outra acontece com todos que se desentendiam com a antiga moradora do 103. Aos poucos, a moradora do 404 percebe que o prédio começa a ter estranhos barulhos e parece que tem uma leve inclinação na direção da garagem. Pouca coisa, porém para o olhar neurótico por alinhamentos dessa mulher, não passa desapercebido. Do lado de fora da porta de entrada se percebem muitos bichinhos, traças, teias de aranha. O 103 permanece fechado. O proprietário desiste de alugar. Dona Augusta fica mais e mais depressiva, os médicos não acertam com a medicação. Ela briga com a maioria dos novos vizinhos e atendentes da casa. Cada dia mais magra, parece que vai secando qual uma fruta desidratada. O prédio, antiga moradia de Dona Augusta, dá sinais de estresse na estrutura. Quase milimetricamente vai cedendo o piso do apartamento logo acima do 103. Os proprietários fazem contato com a administradora do condomínio, que não aponta nenhuma causa para o problema. Passados alguns meses, cai uma placa do piso do apartamento 203. Esse fato coloca todos os condôminos em alerta. Reivindicam a abertura da unidade térrea. Quando é aberta a porta da antiga morada de Dona Augusta. O prédio implode. Após muitos dias, a perícia libera o laudo. Uma mutação genética de cupins atacou as paredes do 103 e corroeu a base da construção toda. Ainda bem que as pessoas amigas de Dona Augusta não estavam em casa no momento do acidente. Os demais todos morreram ou ficaram extremamente machucados. Ao saber da notícia, Dona Augusta foi se acalmando, parou de brigar. Dos braços de Hipnos passou suavemente aos baços de Tânatos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

MULHERES TRABALHADORAS

Mulheres Trabalhadoras Saía e voltava só na madrugada fazendo barulho, me acordando, após cada explosão de raiva, cada crise de gritos, ameaças e tentativas de me trancar em algum lugar da casa ou no carro. Em muitas manhãs saí pra trabalhar com muito sono, mas aliviada de não ter que ficar junto com a pessoa. Aprendi a conviver com esses rompantes de diferentes maneiras. Às vezes ficava muda, lembrando a avó Solita, outras, acho que não me dava conta do que estava acontecendo e ainda argumentava, tentando chama-lo à razão. Em outros momentos, entrava na onda e gritava, me enfurecia também. Esta reação me deixava muito mal, pois percebia o poder que a pessoa tinha de comandar até meus sentimentos, reações. Meu coração disparava. Nos últimos tempos, durante período em que estava trabalhando menos, em Férias ou Licenças, comecei a sentir mais nojo, até o fato de sentar à mesa junto me incomodava. Preparava o alimento com cuidado, procurando não passar energia ruim pras panelas e sen...

Fudeu

Agora ela conseguiu me ferrar mesmo! Queria controlar minha vida e quando eu poderia encontrar meus brothers e tal. Mandei à merda. Foi ficando cada vez mais chata. E tudo foi piorando devagar, sem que imaginasse onde ia chegar, foi apodrecendo. Um dia saia curta, coxão de fora, peguei forte no braço, ficou a marca. No outro, batom vermelho, dei um tabefe. Mas aí, foi ela que pediu. Não tive saída. Na gravidez ficou insuportável, mostrando o peitão. Eu não queria, mas dei outros tabefes. Virou rotina. Queria regular a minha cerveja. Quando minha filha já tinha três anos, aquela vaca tava demais. Calça apertada, sacudindo o popozão e dizendo coisinhas pra ensinar mal à criança. Perdi a cabeça. Ainda por cima, a irmã dela tava lá. Não aguentei. Comecei a socar e quando caiu, se fazendo de machucada, dei uns pontapés. Nem sei quantos. Minhas mãos e pés se mexiam por conta. A piranha foi pro hospital. E, pra ferrar com a minha vida, acabou morrendo. Diz que teve perfuração do int...

DISTÂNCIA NECESSÁRIA

       Distância Necessária   A pergunta "o que tô fazendo comigo?" me acompanhava nos momentos mais lúcidos dos últimos tempos. Por que me submeter a um relacionamento ácido, que me deixava infeliz, me fazia doente, quando me programei pra viver plenamente este período de maturidade com os filhos independentes, quase aposentada? Feito um atleta que tem toda uma preparação física e psicológica fui me preparando pra tomar a decisão saudável. Não decidi racionalmente, aconteceu feito uma semente que cumpre o mistério da germinação. De novo a vida ou destino me favoreceram. Com a enfermidade e hospitalização de minha mãe em Herval, necessitei ir até lá. O "companheiro" e eu havíamos acertado essa viagem e estávamos organizando tudo pra esse fim. Com o surto que teve, acabei indo só. Ir sozinha trouxe algumas condições propícias pro desfecho que houve. A primeira e essencial foi dirigir mais ou menos 400 km. Minha habilitação não é tão antiga, não tenh...