Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de 2009
DONA AUGUSTA “...Eis que eu com esta vara, que tenho em minha mão, ferirei as águas que estão no rio, e tornar-se-ão em sangue. E os peixes, que estão no rio, morrerão, e o rio cheirará mal; e os egípcios nausar-se-ão, bebendo a água do rio...” Bairro nobre da capital, prédio antigo, na esquina de uma rua movimentada. Apartamento de fundos, térreo, janelas para garagem, 103. A última inquilina sofre de depressão, tem histórico de internações, aposentadoria por invalidez. Briga com a mulher do síndico, odeia o apartamento. Diariamente roga pragas ao prédio, à unidade onde mora, ao síndico, à mulher dele e aos moradores que não falam com ela. Gosta da moradora do 404 e do casal do 303. Homem pra ela é sinônimo de pilantra. Exceção, no mundo dos vivos, ao irmão e filho. Everardo, o filho, embora já no segundo casamento é um bom homem. Felipe, o irmão, liga toda semana, tem uma loja de produtos para pequenos animais, o que absorve seu tempo e energia. Toda vez que seus vizinhos amigos

é dia, é hora

É DIA, É HORA Madrugada. Choro de criança. Gata no cio. Vento. Estranhos sons: buzina, freios no asfalto, apitos, estalos. Rola pra lá, pra cá. O outro lado vai ser melhor. Acomoda travesseiros, puxa coberta, destapa o pé. O corpo, feito uma corda de guitarra, vibra com ressonância extrema ao menor estímulo. Hiperestesia. Procura, procura... (O material perdido na mudança pode estar no armário grande.) O medicamento causa excitação . É dia, é hora!

Para umas noites que andam fazendo

deixe eu abrir a porta quero ver se a noite vai bem quem sabe a lua lua ou nos sonhos crianças sombras murmuram amém deixa ver quem some antes a nuvem a estrela ou ninguém nunca sei ao certo se sou um menino de dúvidas ou um homem de fé certezas o vento leva só dúvidas continuam de pé Paulo Leminski

Mistérios hão de pintar por aí

“Mistérios hão de pintar por aí” A imagem da latinha de fermento, com outra impressa, com outra dentro, com outra, desde a infância me traz inquietação, suscita mistério. Como se esta relação se mantivesse eterna além do invisível. Assim me ocorre a idéia de aprisionar a cultura. O forno onde a cultura é preparada usa diversos ingredientes, dentre eles a criatividade, o imaginário, a necessidade de expressão grupal. Ela é pulsante como uma estrela. É cambiante. É “uma senhora grega de camisola e tocha, uma índia negra e portuguesa de cocar e saiote” (no dizer de Arnaldo Jabor), uma prenda de mini saia, uma colona de calça e vestido por cima, um guri de unhas pintadas de preto. É prenhe de vida. Por mais que alguns puristas se ofendam com o uso de gírias, por exemplo, elas acontecem, tornando vivo o idioma, uma manifestação cultural. Ao infinito ela continua sendo gerada, é marca de civilização.

Praça central

Praça Central Sete horas da manhã, umidade, Luz pouca na praça central. Sapato, salto sete e meio, Modelo feminino, tamanho quarenta. Junto, a echarpe rosa antigo. Cuidadosamente colocados Sob a árvore centenária, Próxima ao passeio transversal. Instigante imagem! Restos de uma noite? Provas de um crime? Cifrada mensagem?

Eclipse lunar

Eclipse Lunar Ora, ora, ora... Então é assim? Agora se veste de odalisca Coberta de véus, Com transparências. No alto, misteriosa, Rouba olhares apaixonados! Mas segue sua órbita...

Dor

Dor Dor de parto, dor de dente, dor de ouvido, Dor de barriga, dor de fome. Dor de separação. Dor de perda, de partida. De saudade. Hiperestesia. Dor de todo corpo. Fluoxetina. Ausência de dor. Ausência de vida. Dor de morte. P. S. Poema inspirado em Autopsicografia de Fernando Pessoa

Calor

Banho frio, disposição interior, gelados, água, água, água. Almoço insosso, indisposição, suor, sono. No coletivo, o vizinho passageiro passa descuidado o braço melado, vinagre, no meu. Nojo. Do meu? Do dele? Do suor, de quem?

DONA RITA

Dona Rita “...E às vezes acontece que elas, querendo copiar, só copiar, algum pássaro que viram, se põem a recortar e costurar, ponto após ponto e terminam descobrindo algo mais colorido e cantor e voadeiro que qualquer um dos pássaros do céu.” Eduardo Galeano Morada no Dunas, rua 15, penúltima do loteamento. Chalé: quarto, cozinha e banheiro. Cheiro de pinho e marcela. Tampa do fogão baixa, chaleira brilhando sobre guardanapo de saco branco pintado, com bainha de crochê. Meia garrafa de caninha sobre a mesa, estampa de São Jorge no calendário da parede. Tudo limpo. Cortina floreada divide o quarto em dois ambientes: cama de solteiro, mesinha, guarda-roupa, avental da limpeza do colégio no espaldar da cadeira; no outro, poster do Sabotage colado no armário, um espelho, tênis de futebol, pendendo da cabeceira da cama, meias jogadas no chão. Alto toca o Rap “Um bom lugar”. Sábado de Aleluia, entrada da noite. Cado, quatorze anos, se arruma para sair: bermudão, tênis de esqueitista,

CONSULADO ITALIANO - MENINO DEUS

CENTRO

QUANTOS A MENOS?

Quantos a menos? No colégio de periferia o guri é o mais indisciplinado, o não-aprendente, o repetente, o brigão. Três anos de classe especial, até a professora compreender o processo de construção de conhecimento do Lu. Deste ponto em diante, deslanchou, foi para a quarta série, sem outras reprovações. Cada professora via naquele guri um desafio, desejando que aprendesse, se tornasse um bom cidadão, apesar dos palavrões, socos e pontapés desferidos quando tirado do sério. Até poderia se dizer “foi a persistência da professora em não permitir a evasão do aluno, o que de mais bonito aconteceu naquela escola”, usando as palavras de Célia Maciel, no comentário do filme chinês “Nenhum a menos”. Irmão de cinco meninas, filho de rígido policial militar, ficou órfão de mãe.   Sumiu nosso “menino mau”. O que houve? alguém pode nos dar notícia dele? Soubemos da transferência para São Lourenço, casa de uma tia. Os motivos eram contados em segredo: o pai o expulsara de casa, pois ele

DIÁLOGOS

Diálogos   Valores como liberdade, integridade, qualidade intelectual, sentimentos nobres, coragem e outros são ideais sociais. A profissão de professora é baseada na relação interpessoal, na competência técnica e na autoridade. Há algum tempo essa relação se calcava no medo e não no respeito. A palmatória, os grãos de milho falavam mais alto que a autoridade. A universalização do ensino básico encheu as salas de aula, o número de estudantes atendidos aumentou. Com os baixos salários, os professores correm de um ambiente de trabalho para outro, qual maratonistas, fazendo até sessenta horas semanais para alcançar uma remuneração de sobrevivência. A tecnologia avança rapidamente, os meninos e meninas dominam algumas técnicas que seu educador desconhece e a algumas nem tem acesso. O problema salarial nos impede de buscar informações, estar atualizados e investir em formação, o que é quesito fundamental da licenciatura. Não sou adepta da tese (publicada em recente artigo neste jo

box king?

JUQUINHA

    Juquinha Classe de alfabetização, periferia. Meados de junho, o começo das aulas. Quase todos terão a primeira experiência escolar. A professora recém nomeada apresenta comportamento maternal e protetor. Tudo começa bem. A situação é desafiadora: alfabetizá-los até final de dezembro. Após duas semanas de convívio, Marlety caracteriza traça as diferenças entre uma e outra criança. Uns são limpinhos, outros mal cheirosos, muito sujos. Uns são doces e de fácil convívio, outros tem dificuldade em compartilhar seus pertences e mesmo aqueles de uso coletivo. Uns comem desesperadamente a cada refeição no refeitório. Ainda tomam a merenda dos colegas. No entanto, um menino é especialmente distinto de todos os outros: seu olhar é cheio de vivência, é um olhar duro, frio, com ódio. Seu aspecto físico é semelhante a um duende: rosto triangular, orelhas abertas, pontudas e grandes, corpo miúdo. O material e a roupa que usa, no entanto, são de criança bem cuidada. Uma tarde, logo após