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JUQUINHA

 

 

Juquinha

Classe de alfabetização, periferia. Meados de junho, o começo das aulas. Quase todos terão a primeira experiência escolar. A professora recém nomeada apresenta comportamento maternal e protetor. Tudo começa bem. A situação é desafiadora: alfabetizá-los até final de dezembro.

Após duas semanas de convívio, Marlety caracteriza traça as diferenças entre uma e outra criança. Uns são limpinhos, outros mal cheirosos, muito sujos. Uns são doces e de fácil convívio, outros tem dificuldade em compartilhar seus pertences e mesmo aqueles de uso coletivo. Uns comem desesperadamente a cada refeição no refeitório. Ainda tomam a merenda dos colegas.

No entanto, um menino é especialmente distinto de todos os outros: seu olhar é cheio de vivência, é um olhar duro, frio, com ódio. Seu aspecto físico é semelhante a um duende: rosto triangular, orelhas abertas, pontudas e grandes, corpo miúdo. O material e a roupa que usa, no entanto, são de criança bem cuidada.

Uma tarde, logo após o começo dos trabalhos, ouve-se uma batida forte na porta da sala. Era uma senhora se dizendo avó de Juquinha. Pediu um particular com a professora. Com cuidado, Marlety avisa as crianças para continuarem os trabalhos, pois vai conversar com a avó de Juquinha.

A senhora, cheia de mistérios, pede à professora que feche a porta. Avisa logo: Juquinha levou para casa vários brinquedos e materiais escolares dizendo que havia ganho de outro colega. Dona Amélia, a avó, começa a contar sua relação com o menino:

- Professora, eu sou avó emprestada, vivo com o avô dele. A mãe dele não ensina. Mas eu dou tudo, desde a palmada até o leite. Nem lhe conto o que eu passo. A mãe dele é mal educada. Vive namorando, não cuida do guri, fica na casa do namorado. Onde se viu, um dia na casa de um, outro dia... Chama ele aqui, professora. Quero que ele confesse na tua frente como conseguiu estes brinquedos. Tu não imagina todas as coisas que ele me diz. Mas eu quero que ele seja um homem de bem. Ele sabe que mentir não adianta. Ele roubou, professora! A partir de agora ele não vem, nem volta mais sozinho. Ele mente pra mãe dele, pro avô... Faz intrigas!

Ouve-se um barulho de mesa e cadeira caindo, um grito. A professora abre a porta preocupada. Juquinha está dando pontapés no colega maior da mesa de trás dele. Os outros tentam acalmá-lo. Está virado numa fera, não ouve ninguém.

Marlety se aproxima, fala com Juquinha. Dona Amélia invade a sala e xinga a turma toda. Juquinha se obstina a ficar calado. Só faz gesto de assopro com os lábios, esvaziando fortemente o pulmão a cada vez.

A professora grita, e avisa para dona Amélia se retirar. Esta sai, arrastando Juquinha consigo. Semana pós semana, há um episódio similar, envolvendo Juquinha.

Um dia, Juquinha apareceu com um estojo com material escolar igual ao de Marlety.

A professora, alegre, elogiou Juquinha por ter achado seu estojo. O menino teve um surto de raiva e gritava:

- Tás dizendo que roubei? Quero ver tu provar. Vou ligar pro Conselho Tutelar. Vais ver o que vai te acontecer!

Marlety tentou desviar a atenção do foco do problema. Levou a classe para brincar na pracinha. Na próxima aula, segunda-feira, veio Dona Amélia, o avô, a mãe da criança e Juquinha falar com a Direção, o Serviço de Orientação Escolar e a Supervisão da Escola. Relataram a acusação de Marlety ao menino. Marlety foi chamada, escutada. Solicitou a Juquinha que confirmasse sua versão.

Quando olhou nos olhos do menino, percebeu experiências de mais de quinhentos anos naquele olhar: fome, humilhação, dor, inveja, convívio com drogas, hábito à negociações espúrias, mentiras, traições, falsas relações...

Não voltou para a sala de aula. Foi embora daquele lugar, daquele trabalho, daquele estágio probatório, daquela escola, daquele aluno.

Comentários

  1. Bem vinda à trupe, o blog é muito legal para podermos publicar nossos escritos e socializá-los. Beijooooo

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  2. Que visão sociológica! Muito bonito! beijoo saudades

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