Dona Rita
“...E às vezes acontece que elas, querendo copiar, só copiar, algum pássaro que
viram, se põem a recortar e costurar, ponto após ponto e terminam descobrindo
algo mais colorido e cantor e voadeiro que qualquer um dos pássaros do céu.”
Eduardo Galeano
Morada no Dunas, rua 15, penúltima do loteamento. Chalé: quarto, cozinha e banheiro. Cheiro de pinho e marcela. Tampa do fogão baixa, chaleira brilhando sobre guardanapo de saco branco pintado, com bainha de crochê. Meia garrafa de caninha sobre a mesa, estampa de São Jorge no calendário da parede. Tudo limpo.
Cortina floreada divide o quarto em dois ambientes: cama de solteiro, mesinha, guarda-roupa, avental da limpeza do colégio no espaldar da cadeira; no outro, poster do Sabotage colado no armário, um espelho, tênis de futebol, pendendo da cabeceira da cama, meias jogadas no chão. Alto toca o Rap “Um bom lugar”.
Sábado de Aleluia, entrada da noite. Cado, quatorze anos, se arruma para sair: bermudão, tênis de esqueitista, camiseta do Xavante, boné preto.
- Baixa isso aí, muleque! - berra o alemão da casa ao lado.
Cado não ouve. Sente-se pauladas na parede. Rita abre a porta da cozinha e vê Rudi, o vizinho que chegou há pouco de Canguçu, está transtornado. Ela tenta compreender:
- Que é isso? O que tá acontecendo?
- Vou dá nesse guri, não me deixa escutá o programa. Negro mal acostumado! Não tem pai prá te ensiná? - ameaça Rudi.
- Pode fala comigo, sou a mãe dele.
- Então faz ele baixa esse troço. Merda!
- E vocês, cedinho de manhã, ligam o rádio bem alto! Aí, não incomoda, né? - entra em casa.
Continuam gritos e ameaças.
Rita, endemoniada, sai com o facão três vincos, tira faíscas das pedras do caminho.
Rudi não pega mais água ao lado de casa, caminha uma quadra até a próxima bica. Rita é Dona, sim senhora.
Mulheres Trabalhadoras Saía e voltava só na madrugada fazendo barulho, me acordando, após cada explosão de raiva, cada crise de gritos, ameaças e tentativas de me trancar em algum lugar da casa ou no carro. Em muitas manhãs saí pra trabalhar com muito sono, mas aliviada de não ter que ficar junto com a pessoa. Aprendi a conviver com esses rompantes de diferentes maneiras. Às vezes ficava muda, lembrando a avó Solita, outras, acho que não me dava conta do que estava acontecendo e ainda argumentava, tentando chama-lo à razão. Em outros momentos, entrava na onda e gritava, me enfurecia também. Esta reação me deixava muito mal, pois percebia o poder que a pessoa tinha de comandar até meus sentimentos, reações. Meu coração disparava. Nos últimos tempos, durante período em que estava trabalhando menos, em Férias ou Licenças, comecei a sentir mais nojo, até o fato de sentar à mesa junto me incomodava. Preparava o alimento com cuidado, procurando não passar energia ruim pras panelas e sen...
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