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PLACEBO

Marlene precisou interromper seu isolamento pra socorrer a vizinha amiga, Emoacyl. Convivem há décadas, são comadres. Uma sabe mais da outra que qualquer pessoa da família. Parece que uma é a familiar mais próxima da outra. A amiga conta que encontrou Emoacyl caída com muito sangue à volta, toda suja e malcheirosa. Chamou a ambulância. Eles ligaram pra Patrulha Maria da Penha, da Brigada Militar. Emoacyl acordou com uma luz branca forte nos olhos. Custou a entender onde estava. Rostos desconhecidos, só os olhos de fora das máscaras a olhavam com uma expressão de cansaço. Ela também sentia grande exaustão, uma dor na cabeça e na boca do estômago, começou a lembrar um embrulho de coisas, tudo emaranhado. Diz que durante o jantar, Hermógenes jogou comida na parede pois teria achado tudo ruim. Ela correu pro banheiro com a mão na boca, em golfadas toda a janta foi devolvida. Ele entrou atrás e xingando socava sua cabeça dentro do vaso, ela resistia. Com força ele a empurrou e bateu-lhe com a cabeça na borda da privada. O sangue jorrava. Em pânico gritou pela vizinha. Depois acordou na sala de recuperação. Assustada olhou em volta, lembrou “daquele coisa”, ainda bem que ele não tava ali. Alívio, não aguentava mais todos aqueles dias trancada no apertamento com ele. Só fumava, um cigarro atrás do outro, bebia da manhã à noite e praguejava. Dormia mal, ele inventava confusões do nada. Falava mal do sabor da comida, do latido do cachorro, da sujeira da casa, da política, do síndico, do vizinho. Vociferava na janela. Isolamento do inferno, ela chegava a imaginar que talvez fosse melhor pegar logo esse vírus e terminar com o sofrimento. Marlene já prevenira a amiga que alguma coisa pior poderia acontecer mas não obteve sucesso todas as vezes que pedia para ela sair dessa relação doentia. Afinal “aquele coisa” como elas se referiam a Hermógenes nem era o pai dos filhos dela. Estavam juntos há quinze anos mas toda a vizinhança sabia que ele era um malandro, um mau caráter, já havia brigado com todos ali por perto. Bebia diariamente, da manhã à noite. Parece que usava cocaína também. Emoacyl brincava que ela, com nome de remédio, iria curá-lo. Não conseguiu sair do hospital, contraiu o vírus, não se recuperou da cirurgia e não resistiu. Pra ser maior a perversidade, a vizinhança toda soube que o malandro ainda receberá uma pensão da falecida, talvez traga a outra mulher pra casa.

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